terça-feira, 29 de novembro de 2011

Vó Lena

O Hospital Fernando Fonseca é, para além dos que mais casos de rejeição referencia, aquele que tem crianças para adopção mais tempo nas suas enfermarias. Em boa verdade, porque não há capacidade de resposta da Segurança Social face às solicitações que lhe são feitas.
A carta que se segue foi "escrita" à enfermeira-chefe de Neonatologia, por uma reguila que esteve cá cinco meses até ser adoptada. A mãe biológica, toxicodependente, chamou-lhe Bruna e deu-a para adopção. Nós chamámos-lhe Teresa. Nasceu a ressacar de heroínas (com síndrome de abstinência, como dizem os técnicos) mas agora há-de andar a pavonear-se na beleza dos seus meses reguilas.

Vó Lena
Quando leres esta carta é sinal de que já se acabaram as férias para ti. Para mim, acabou esta coisa de ser o centro das atenções de pessoas mil. Perdemos as duas: tu, o sossego; eu, o rebuliço.
Não é certo que os netos peçam meças às avós. Mas, neste caso, não sei quem vai perder mais: se tu, se eu!
Dizem-me que és tu que me perdes a mim. Eu acho que não. Dizem-me que eu, afinal, ganhei finalmente aquilo que todos os meninos têm por Direito: Uns pais. Está lá, na Carta de Direitos da ONU: toda a criança tem direito a uma família. Dizem-me assim que eu vou ter uma família. Dizem. Os estúpidos. Então… haveria nalgum sítio de Portugal alguém com uma família maior que a minha?
Queres ver?
Olha… tinha-te como avó. O que até dá um certo “sainete”: ser neta da enfermeira-chefe. Acho que os outros miúdos me tinham respeito por isso. E, depois, se bem que o hospital não fosse um quartel, sempre se podia adaptar a máxima militar de que “a velhice é um posto”. E está bom de ver que estando eu no hospital há cinco meses (aliás, não conheço outra coisa que não seja hospital), já era… já era pr’aí “generala” de Pediatria.
Depois, tinha as tuas ajudantes de comando. Seriam os tenentes-coronéis cá do sítio (ou lá do sitio. Conforme a hora em que me estiveres a ler): mandam, fazem cara de má, dão ordens e assinam papéis mas, no fundo no fundo, haviam de encontrar sempre um bocadinho para me desentorpecer as pernas e estimular – como dizem os enfermeiros.
Depois… já viste quantos subordinados teus – e amigos meus – eu vou perder? De certeza que me vou esquecer de muitos. Mas deixa-me lembrar alguns (só para provar o tanto que perdi):
Começo pelos estrangeiros: correram os teus bisavôs com eles à paulada e eles cá estão de novo, os espanhóis: bem feito que me mudaram de vezes as fraldas (nem queiras saber, então, nestes últimos dias quantas vezes foram!!!). Cá para mim, eles já se esqueceram de Aljubarrota. Só pode ser assim: cada pedaço de uma sarda da cara pintalgada da Vega era um mimo para mim. E esse é só um exemplo da subordinação espanhola ao poder do coração português.
Mas há outros. Os homens sempre tiveram um fraquinho por mim. Não há muitos – é verdade. Mas cada um deles que me limpou do vício nos primeiros dois meses e me viciou em mimo nos últimos três deu-me estaleca para enfrentar a voz masculina que agora vou ter todos os dias. Afinal, num galinheiro onde mandam as galinhas, é bom conhecer o timbre do galo. E agora, na nova casa, quem sabe se não é o galo que manda…
Falei na Vega por causa das pintas. Injustiça. Tenho de falar na Ana Luísa que me tornou vedeta de filme; na Inês que me aturou as coceiras dos primeiros dias, na Carla, na Filipa, na Sofia, na Inês, na Paula – todas elas recordações antigas, quase sumidas, por força daquilo que tu sabes que eu tinha e já não tenho.
Agora tinha outras. E já estava a habituar-me. A Marília, sempre reivindicativa mas muito amiga; a Sónia cuja sobriedade é o garante do sucesso; a Raquel, essa reguila loura; a Ana, a Catarina, a Patrícia, tantas e tão boas que nem tu sabes.
Aqui para nós, está bom de ver que as que não têm o nome nesta carta vão achar que não me lembrei delas. Claro que lembrei. Claro que lembro. Só que acho que esta cabeça tonta não dá para decorar todos os nomes. Conheço-as as todas. Quase tão bem como me conhecem a mim. Pede desculpa a elas.
E depois, se bem que o meu mundo seja grandemente pequenino, com fronteiras desenhadas no limite da Pediatria, não posso esquecer que me abristes outras portas. E me levaste ao estrangeiro – ainda que o estrangeiro fosse no andar de baixo -, onde moram os tios ricos. Lembras-te de me vestires a preceito para visitar os doutores – com aquela roupa, quase sempre nova, ainda com goma nas golas, mas bem cheirosa e apropriada para visitar doutores?
E lembras-te como, ainda que doutores, elas soletravam “gugu-dada” como qualquer outro que não seja doutor? Já viste que é nos gestos de amor que somos todos iguais? A minha mãe biológica, agarrada – deixando-me agarrada a mim – sempre que me afagou foi como os doutores. Tá bem que se podia esquecer logo a seguir. Mas o afago é igual. Aqui, lá em baixo, na rua, na China ou no Bairro 6 de Maio ali para a Damaia. O amor não se mede por títulos. Ainda bem.
Dá um beijo a eles por mim. E pede-lhes, como se fosse eu a pedir que, sendo eu um caso arrumado, focalizem todas estas atenções para os que cá ficam. Eu sei que para os teus ajudantes de comando e subordinados nem isso preciso de pedir. É a vocação deles. É a vida deles. Pode dizer-se, aqui e ali, que ninguém reconhece isso. Eu e os meus “irmãos” de selva reconhecemos. Espero que seja compensação bastante.
E pronto. Havia tanto para dizer e não sei mais o quê mas falta-me assunto. Dá o meu mobile a quem precise. E aqueles sapatos que não me servem; e o conjunto da hello kitty e o resto. Dá tudo mas guarda um pedacito de amor para os que cá ficam. Ou melhor: dá-lhes tanto como destes a mim. E passa a mensagem. Essa é a minha herança.
O tribunal escolheu os meus pais novos. Escolheu-me a família. É a única diferença que tenho dos outros. Em condições normais, a família não se escolhe: nasce quando nascemos (até nisso irei ser diferente. Terei, para os efeitos que não são de lei e onde o tribunal não mete prego nem estopa, duas famílias: a biológica e a que me dão agora por despacho).
Duas famílias? Que injustiça: Três! Três é que são!
A família maior é a que deixo agora, quando me levarem com a papelada.
Quando quiserem lembrar-se de mim, vejam o filme. Eu, é quase certo, vou esquecê-los. A não ser que os meus novos pais, um dia, quando tiver idade para isso, me lembrem que os meus primeiros meses foram diferentes e me mostrem àqueles que agora deixo para trás.
Como sabes, o meu obrigado ainda se limita a um riso – quase pouco dobrado – e a uns sons disparatados. Se eu pudesse explicava-vos, como Lennon fez ao escrever “Across the Universe”, “nothing gonna change my world”. O meu futuro será um espelho daquilo que tu e os outros ajudaram a criar. Ou seja: bom!!
Hoje, “something changes my world”!
PS. Não deixes o Salvador e a Beatriz ficarem tanto tempo aí como eu.
Beijos
Bruna (por parte da mãe), Teresa (por parte de ti), Fonseca (por parte de todos os que me criaram nos meus primeiros cinco meses de vida no Fernando Fonseca)

sábado, 26 de novembro de 2011

Colite divertida? Uma ova!

Depois de anos a fio a comer fumo da soldadura sem que isso lhe desse a volta às entranhas, agora que estava em casa há tempo demais - a gozar a reforma de uma velha Sorefame que dava cor às linhas da CP -, é que os intestinos lhe pregavam dores de cabeça.  E de barriga – está bom de ver. As cólicas eram de tal forma que aquilo só sossegou quando entrou pela porta da urgência do hospital. Já tinha ficha e processo por força de desatinos da tensão arterial mas, agora, a dor vinha de baixo e atravessava-o de lado a lado fazendo-o dobrar os joelhos e segurar a barriga como se os afagos do baixo ventre lhe aliviassem a dor.
Uma diverticulite, foi o que lhe arranjaram no balcão da urgência. Motivo mais do que suficiente para o internamento e uma guia de marcha quase passada para acesso ao bloco operatório. Quando a família se lhe chegou para a primeira visita não soube explicar bem o que se passava. Era uma trampa qualquer que lhe dava uma dor assim como quem sente uma faca a espetar-se-lhe barriga adentro. Ainda que não soubesse o que era uma faca a espetar-se-lhe onde quer que fosse. Uma dor que “ai, ai que dói que se farta!…”


A referência à cirurgia não foi uma grande surpresa. Já tinha ouvido falar que essa era a solução para a diverticulite ou colite divertida ou lá o que raio era que dava dores como o caraças. A surpresa veio depois quando lhe disseram que a operação teria de justificar aquela coisa estranha de andar com um saco em permanência ligado aos intestinos. Isso acabava com a vida social. Isso acabava com a vida. A pensar no amanhã, estimava não ter amanhã. Estava bom de ver que não ia sair mais de casa. Onde já se viu? Sair de casa e dar-lhe uma volta aos intestinos e encher o saco. Ali ao pé dos outros, na rua. Os tempos acabam quando os crescidos retornam às parvoíces dos putos. E o acto de poder borrar-se todo era parvoíce de puto.
Foi nesta canseira, a guerrear com os intestinos antes que eles dessem em guerrear sozinhos e fizessem asneira, que recolheu à enfermaria. O pior – o melhor para ele – viria no dia seguinte pela boca da médica assistente. Os padrões da sua tensão arterial, demasiado altos, não permitiam a operação; uma infecção oportunista nos pulmões também não aconselhavam ao corte. Enfim… ou a colite assumia a condição de divertida e curava-se à força de medicamentos, ou a coisa tenderia a piorar e a dar para o torto.
Curou-se. Antibióticos, comprimidos amarelos, azuis, de duas cores, de forma achada ou comprida, revestidos ou simples a saber mal, xarope com sabor a mel e a flores, animou-lhe os divertículos e curou-lhe a infecção. Essa. No hospital há duas semanas vieram atrás daquela, da que a tinha levado ali, outras infecções. Foi nos pulmões, na bexiga, foi gripe e pneumonia, foi uma colecção de maleitas que não lhe deu tréguas enquanto esteve internado. Sentia-se inchado, mais gordo do que o que era e estava naquela fase em que não sabia se tinha sido melhor ir à operação e ficar-se ou ficar-se sem operação.
Nem uma coisa nem outra. A esperteza dos antibióticos conseguiu superar a manha das infecções. Estava a ficar bom. Estava?
“Estou todo borrado! Estou todo borrado!” – tocou a campainha vezes sem conta. Os intestinos, os que o tinham levado ali, teimavam em torná-lo bobo. Sentia-se acabado. Lembrava-se…
Os tempos acabam quando os crescidos retornam às parvoíces dos putos.
E o acto de borrar-se todo era parvoíce de puto.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

No dia em que se fala de violência doméstica...

Num andar desajeitado próprio de quem não tinha mais de metro e sessenta de altura mas, em compensação, juntava bem mais de 80 quilos num metro de largo, a mulher foi estrategicamente afastada para uma conversa a despropósito mas propositada para me deixar entrar enfermaria adentro sem suscitar perguntas. De olhos arregalados, espantados, diria, ela estava ali de baby-grou rosa, no carrinho da Chico, chucha e muita confiança na assistente social que me acompanhava e pouca, nenhuma, decerto, em mim.

Quando me ajoelhei a seu lado para lhe ficar ao nível da face esboçou um beicinho e arregalou os olhos como se a figura de um homem lhe trouxesse um sinal de alerta. Já me acontecera antes, vezes tamanhas, quando decidia – sabe-se lá porquê – passar tardes a fio junto dos filhos das mulheres presas em Tires. Os putos berravam sempre sendo-me então explicado que não estavam, numa prisão de mulheres, habituados a ver homens. E os pais, nem sequer os conheciam.

Ali era diferente: definitivamente, pela história que trazia atrás de si, aquela bebé não gostava de homens porque eles eram portadores de porrada. Não foi difícil, ainda assim, conquistar-lhe a confiança: de joelhos, já se disse, estendi-lhe o indicador que agarrou como que a dizer “não me faças mal” e ronronou com o pescoço à volta de si num gesto de mimo que ainda ninguém lhe conhecia. Fazendo uso das manhas de pai – se bem que com 17, o miúdo lá de casa já tenha pouca disponibilidade para mimos – um afago com a mão livre –a outra estava bem presa pelos deditos numa garra pouco maior que uma noz – abriu caminho para uma conversa longa e bastante para me deixar vidrar os olhos e justificar uma vontade tamanha de a trazer para casa num fim-de-semana que desejaria não acabar tão depressa.

Falámos. Falámos muito. Falámos tanto que depois de um dedilhar da face e um cuidado tamanho em não lhe tocar nem nos braços nem nas pernas – aqueles com os artefactos que permitem a canalização de suprimentos, estas a solidificar das cinco – cinco! – fracturas com que chegou ao hospital, diz-se, depois de sovada pelos pais. Ou pelo pai. Ou pela mãe. Ou por quem quer que seja que não se sabe quem é e só se saberá quando o ministério público de Sintra tiver tempo para mandar investigar..

Sabe-se isso sim, que a Ana Sofia tem nome, seis meses e entrou-nos porta dentro vítima de maus tratos. Sabe-se, já se sabe, que a Ana Sofia vai ser entregue a família de acolhimento para adopção. Algo que nem sequer parece preocupar a mãe - que entretanto já está se presume prenhe. É a terceira vez: a primeira filha foi-lhe retirada por negligência; esta vai pelo mesmo caminho por negligência e violência (ou cumplicidade na violência); a terceira, a que vem aí, logo se verá.




Quando saí da enfermaria – para a mãe entrar – o embevecimento pela Ana Sofia era proporcional à raiva que tinha para com aquela mulher. E nem quando ela aconchegou a filha ao peito, para lhe dar de mamar ao mesmo tempo que a Ana, com a mão do braço não canalizado, afagava, de cima para baixo em pinceladas perfeitas, a parte de cima do peito da mastronça, mudei o sentimento. Sobretudo, porque soube que depois de cada tareia de deixar marcas, o choro da pequenita era sufocada no teta da mãe. Devia ter estranhado, desta vez, que a mama lhe chegasse à boca depois dum momento de festas e mimo.

As coisas estão a mudar, Ana Sofia. As coisas estão a mudar.

Sevilla

Fui ali ao lado dar ração aos cavalos pura raça espanhola.
Amanhã retomo as crónicas...

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Plaquetas de Lã



Embora o Hospital Fernando Fonseca seja uma Babel bem sucedida, estou em crer que entre nós, muitos foram aqueles que na terça-feira deram um pulo na cadeira a cada golo de Cristiano Ronaldo, abriram a boca de espanto com o golaço de Nani e esboçaram um sorriso de orelha a orelha perante os remates vitoriosos dos habitualmente abstinentes Miguel Veloso e Hélder Postiga. E nem sequer reclamaram de Paulo Bento o facto de ter trocado o ala do Manchester pelo agora granadino Carlos Martins.
Hoje percebemos como foi magnânimo esse gesto do seleccionador português. Carlos Martins está a sofrer as dores de um pai cujo filho, de três anos, sofre de uma estúpida doença degenerativa que se caracteriza pela falência da medula óssea e dá pelo nome tonitruante de aplasia medular. A sua entrada em campo ter-lhe-à aliviado o espírito.  Ainda que o Carlos tenha rematado de uma forma atabalhoada para aquele que podia ter sido o sétimo golo da selecção, hoje ninguém se lembra desse erro. Hoje, preferimos todos recordar a fotografia que acompanha este texto e que foi, comme il faut, captada em pleno Estádio da Luz.


Contada a história do Carlos, o país uniu-se à volta da sua mágoa e está a ser desencadeada a maior onda de solidariedade para doação de medula que alguma vez foi feita em Portugal. A publicidade à volta do caso há-de fazer com que o Gustavo – assim se chama o puto reguila do Carlos Martins – ajude um boa parte dos que, como ele ou com outras doenças, necessitam de constantes transplantes de medula.
Não é exclusivo nosso, decerto, mas conseguimos – até nos momentos piores – mostrar essa excepcional capacidade de nos mobilizarmos em actos de solidariedade.
E o que tem tudo isto a ver connosco, Hospital Fernando Fonseca?
Tudo!
Há pouco mais de dois meses lançámos, no Fernando Fonseca, uma campanha de recolha de roupa para os casos sociais forçados, em momentos de alta, a sair do hospital vestidos com os nossos pijamas ou com roupas mal amanhadas e que seriam as que… estavam mais a jeito. A ideia era conseguir uma bolsa de roupa que pudesse garantir a todos os doentes que, caso necessitassem, teriam uma camisa, um pólo, um par de sapatos, um babygrow, um casaco de malha, algo suficiente para uma alta com dignidade. Puderam, a partir de então, sair pelo átrio principal e não escondidos no banco de trás do carro que os veio buscar. A eles e à nota de alta.
Pois bem. Em dois meses de campanha, chegaram ao gabinete de comunicação mais de três mil peças de roupa, ali levadas por médicos, enfermeiros, administrativos, auxiliares, dirigentes, administradores. Todos, de forma transversal ao hospital, abrangendo todas as classes profissionais do hospital, quiseram mostrar que os doentes, os nossos doentes, deveriam sair do hospital com a nota de alta, é verdade, mas barba feita, a cheirar a malvas e, vestidos com dignidade.
Hoje, quase que atingimos o limite de termos de dizer que já chega de roupa. Temos dado resposta a todas as solicitações e ainda possuímos, em armazém, peças suficientes para um ano de altas sociais entre os mais velhos (nisto de consumir dádivas de roupa, os mais pequenos são menos envergonhados e aproveitaram o momento).
Somos suficiente comedidos para não fazer grande alarde desta campanha solidária que trouxe frutos reais e… muita roupa. Mas somos suficientemente ambiciosos para não nos ficarmos por aqui. Resolvido este assunto, é hora de nos voltarmos para outro. Por exemplo, para aquele que iniciou este texto. O Gustavo e mais “mil gustavos” precisam de medula óssea.
Dizem que não custa nada. São plaquetas que não nos fazem falta. São de lã. É como a roupa…

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Aspirina em Ré Maior


Em dia de Jornadas do Internato Médico, aquele dia onde os “meninos doutores” estão a dar os primeiros passos para o upgrade de “senhores doutores”, a maioria dos doentes internados teve o privilégio de tomar aspirina em Ré Maior. E em Fá. E em Allegro, Andante, Presto… Pianíssimo…. Shiu!

Uma Polka Pizzicato de Strauss acompanhou, na Neurologia, a toma de Coversyl para dominar os ímpetos de uma tensão que teima em subir sempre, enquanto o “Por una Cabeza” de Carlos Gardel, tango, está bom de ver, se definiu como melodia propícia aos labores da equipa de Psiquiatria. Para sossegar o músculo maior que nos corrige os afectos e lhes trouxe enfartes e  deu cabo das coronárias, os doentes de Cardiologia foram prescritos com o tema de John Williams que deu som ao filme Lista de Shindler. Já os doentes de Urologia levaram com o “Divertimento para Quarteto de Cordas em Fá Maior”, de Mozart, para compensar algumas aflições propícias a menor diversão.

Hoje, o Fernando Fonseca deu música aos doentes. Literalmente. Não daquela em sentido figurado e da qual nos queremos ver arredados. Dessa, é crível que os doentes e não doentes ouçam no dia a dia da lufa lufa casa-trabalho, trabalho-casa. Música de sanfona que atazana os ouvidos e desatina a cabeça e que hoje se ouve constantemente travestida de Syrtaki, Hassápiko ou Zebékiko (tudo músicas tradicionais da Grécia), em acordes de Buzuki - que é o instrumento tradicional dos meninos de Atenas.

 Não!

 Foi música mesmo, tocada por músicos de carne e osso habituados aos palcos do D. Maria ou do S. Carlos, que se passeiam pela Orquestra Metropolitana de Lisboa depois de terem rasgado os primeiros sons de violino na Arménia, na Covilhã, em Cascais ou na Roménia. Liviu Scripcaru, 1º violino é romeno; Marcos Lázaro, 2º violino, é cascalense, Jean Aroutiounian, viola de arco, é arménio (também, com um nome destes!) e Nelson Ferreira veio das faldas da Serra da Estrela. É covilhanense.

Os quatro formam (por serem quatro) um quarteto de cordas. Dispuseram-se a despir o fato de gala que trajam em noites de “bravo” nas frisas engalanadas dos teatros onde eu não vou e os doentes também não. Em vez e esperarem por eles no local de trabalho, calçaram as tamanquinhas e vieram animar corredores, enfermarias e auditório do hospital. Não deixa de ser caricato mas, sinal dos tempos, os quatro músicos profissionais vieram até nós pró bono no dia em que o Teatro Nacional Dona Maria II anunciou a suspensão de toda a programação de 2012 em consequência da austeridade anunciada pelo Governo.

Por nós, podem continuar a dar-nos música…


Para os que não foram ao hospital nem estavam no hospital, enlevem o espírito…





terça-feira, 15 de novembro de 2011

O VIP

Abana a anca e avança o pé esquerdo. Vai acima, arrasta em baixo… avança e repete, vai acima, vai abaixo e pára com a vénia. Luciana e Jussiara ensaiaram a moda até quase à exaustão. Ainda por cima, internadas há semana e meia com males da tripa, está bom de ver que chegavam ao limite do cansaço bem depressa. Por isso ensaiaram quase sempre numa sala pequena, aquela que estava mais à mão e trazia a bondade de não obrigar a grandes correrias. Ainda se cansavam depressa e com pressa tinham de sentar-se para que o fôlego voltasse e o coração se deixasse de tão desaustinada correria. Queriam estar na perfeição para a chegada da pessoa importante. Do VIP. E, se bem que não soubessem o que era isso, sempre lhes explicaram que era pessoa que se passeava na televisão e que era bom de bola, que ia a festas caras, vestia fino e falava grosso.

Quando o Luís chegou, a dança foi feita a preceito tal qual as regras que lhes tinham sido transmitidas nos últimos dois dias pelas educadoras que lhes entretinham os espaços temporais, muitos, entre a sopa de dieta e o lanche de iogurte magro. Coradas, tanto quanto a sua já cor escura permitia ver, dançaram frente a frente com um sorriso daqueles grandes, de orelha a orelha. Não se enganaram uma única vez. E o VIP alinhou na dança que lhe foi feita em exclusivo. Mais: fez-lhes perguntas, ensaiou passos com elas e mostrou-se bem mais desajeitado na dança do que as manas de cor.

Estranho. Não é suposto os VIP saberem de tudo, falarem de tudo, conhecerem de tudo? Este VIP não. O Luís é dos poucos que tendo sido melhor do Mundo, conhecido seja na Ilha de Sukkwan, seja no Bornéu ou ali, na Amadora, se manteve lúcido. Veste simples, fala com todos, habitou-se a que o tratem por tu enquanto trata os outros como entende que deve tratar, com deferência – quando merecem de deferência -, com normalidade quando é para ser com normalidade.

Foi ao hospital garantir que por mais um ano os doutores que vestem um nariz vermelho e alegram corredores e enfermarias vão poder continuar por ali, sabe deus quão roídos por dentro, a espalhar sorrisos. Gargalhadas escancaradas, mesmo, provocadas por quem sabe passar de um momento para o outro de uma cara séria e formal para batatinha, pipoca ou Maria bóia. Nomes aparvalhados que ajudam ao riso.

No Fernando Fonseca, as crianças não têm medo dos palhaços. Ainda bem.

O Luís deu um abraço ao hospital garantindo que os doutores palhaços – assim se chamam os donos dos narizes vermelhos – vão continuar. E quis testemunhar o abraço. Veio de Madrid à Amadora para afagar os mais pequenos – muitos nem o conheciam – e assinar autógrafos e posar para a fotografia ao lado dos mais velhos. Falou à Imprensa, que é próprio de quem é conhecido de lés a lés e saiu com um obrigado. Foi ele que agradeceu ter vindo ao hospital. O Luís é VIP a sério. Chamam-lhe Figo. E é por aí que todos o conhecem.