quinta-feira, 24 de novembro de 2011

No dia em que se fala de violência doméstica...

Num andar desajeitado próprio de quem não tinha mais de metro e sessenta de altura mas, em compensação, juntava bem mais de 80 quilos num metro de largo, a mulher foi estrategicamente afastada para uma conversa a despropósito mas propositada para me deixar entrar enfermaria adentro sem suscitar perguntas. De olhos arregalados, espantados, diria, ela estava ali de baby-grou rosa, no carrinho da Chico, chucha e muita confiança na assistente social que me acompanhava e pouca, nenhuma, decerto, em mim.

Quando me ajoelhei a seu lado para lhe ficar ao nível da face esboçou um beicinho e arregalou os olhos como se a figura de um homem lhe trouxesse um sinal de alerta. Já me acontecera antes, vezes tamanhas, quando decidia – sabe-se lá porquê – passar tardes a fio junto dos filhos das mulheres presas em Tires. Os putos berravam sempre sendo-me então explicado que não estavam, numa prisão de mulheres, habituados a ver homens. E os pais, nem sequer os conheciam.

Ali era diferente: definitivamente, pela história que trazia atrás de si, aquela bebé não gostava de homens porque eles eram portadores de porrada. Não foi difícil, ainda assim, conquistar-lhe a confiança: de joelhos, já se disse, estendi-lhe o indicador que agarrou como que a dizer “não me faças mal” e ronronou com o pescoço à volta de si num gesto de mimo que ainda ninguém lhe conhecia. Fazendo uso das manhas de pai – se bem que com 17, o miúdo lá de casa já tenha pouca disponibilidade para mimos – um afago com a mão livre –a outra estava bem presa pelos deditos numa garra pouco maior que uma noz – abriu caminho para uma conversa longa e bastante para me deixar vidrar os olhos e justificar uma vontade tamanha de a trazer para casa num fim-de-semana que desejaria não acabar tão depressa.

Falámos. Falámos muito. Falámos tanto que depois de um dedilhar da face e um cuidado tamanho em não lhe tocar nem nos braços nem nas pernas – aqueles com os artefactos que permitem a canalização de suprimentos, estas a solidificar das cinco – cinco! – fracturas com que chegou ao hospital, diz-se, depois de sovada pelos pais. Ou pelo pai. Ou pela mãe. Ou por quem quer que seja que não se sabe quem é e só se saberá quando o ministério público de Sintra tiver tempo para mandar investigar..

Sabe-se isso sim, que a Ana Sofia tem nome, seis meses e entrou-nos porta dentro vítima de maus tratos. Sabe-se, já se sabe, que a Ana Sofia vai ser entregue a família de acolhimento para adopção. Algo que nem sequer parece preocupar a mãe - que entretanto já está se presume prenhe. É a terceira vez: a primeira filha foi-lhe retirada por negligência; esta vai pelo mesmo caminho por negligência e violência (ou cumplicidade na violência); a terceira, a que vem aí, logo se verá.




Quando saí da enfermaria – para a mãe entrar – o embevecimento pela Ana Sofia era proporcional à raiva que tinha para com aquela mulher. E nem quando ela aconchegou a filha ao peito, para lhe dar de mamar ao mesmo tempo que a Ana, com a mão do braço não canalizado, afagava, de cima para baixo em pinceladas perfeitas, a parte de cima do peito da mastronça, mudei o sentimento. Sobretudo, porque soube que depois de cada tareia de deixar marcas, o choro da pequenita era sufocada no teta da mãe. Devia ter estranhado, desta vez, que a mama lhe chegasse à boca depois dum momento de festas e mimo.

As coisas estão a mudar, Ana Sofia. As coisas estão a mudar.

3 comentários:

Lola disse...

Espero que desta vez fique o comentário:)

Parabéns pela iniciativa.
A ternura no meio da violência-
Beijos

Papillon disse...

Felizmente a Ana Sofia vai ter a sorte que muitos não têm!!!!
E felizmente existem pessoas como tu para nos fazerem lembrar que há muitas "Anas Sofias" e "Mastronças" por esse país fora....só assim as coisas começam a mudar!!!
Beijo

MyCarlosPacheco disse...

Que bom pela Ana Sofia. Mães com esta irresponsabilidade deviam ter um tratamento severo.