domingo, 25 de dezembro de 2011

Picada de vespa em noite de Natal



Já passavam das onze e a avó “Estrudes" andava pela urgência com uma receita, uma capa transparente onde guardava o bilhete de identidade e uma pequena carteira com documentos menores e uma nota de cinco euros. Tocava no braço de cada um com quem se cruzava e perguntava:

e agora o que é que eu faço?
Uns encolhiam os ombros por não saberem responder e outros mandavam-na carimbar a receita – que é forma de a tornar boa para se aviar na farmácia. Estrudes, uma corruptela de Gertrudes, 79 anos, cabelos brancos curtos e ralos, uns pelos pouco generosos (por serem grandes) no queixo, ouvia a resposta, passeava-se por mais um ou dos palmos de terra da urgência e voltava a tocar no braço de um qualquer
e agora o que é que eu faço?
Procurava não perder muito tempo a ouvir quem lhe dava explicações. Não parecia querer ouvir explicações. Ainda assim, deu para ver que a receita passada pelo médico apenas lhe indicava uma pomada. Gertrudes exibia um pequeno penso de compressa no braço direito e, a quem procurava dar-lhe mais conversa, limitava-se a dizer:
foi uma vespa. Ferrou e andou sem que eu tivesse tempo de acabar com ela

Com paciência, foi possível conhecer melhor Gertrudes. Tinha aparecido no hospital levada pelos bombeiros, a quem tinha telefonado dizendo não poder mexer o braço e sentir um formigueiro que lhe subia desde o pulso ao ombro desatinando-lhe os gestos. Deve ter dito o mesmo na triagem já que a classificado como doente “urgente” e dado uma pulseira de cor amarela – que exibia no pulso que não tinha sido ferrado pela vespa. Era a melhor maneira de provar, a quem duvidasse, que estava doente e a merecer olhar cuidado de médico.
pulseira amarela – urgente. Dizem os livros.
Os bombeiros levaram-na ao hospital, comungaram com ela os sintomas junto da enfermeira da triagem e deixaram-na entregue. Agora, na hora de voltar a casa, pouco antes da meia noite, Gertrudes desatinava com o regresso.
anda sozinha?
e ando bem – respondia com pelo na venta.
não tem filhos?
foram para o Alentejo.
e em casa?
tenho a cadela.
ai avó, avó! Mostre lá a receita… uma pomada. Veio à Urgência, na noite de Natal, por uma pomada? Podia ir amanhã à farmácia.
e ficava sozinha com a cadela e à mercê do formigueiro que subiu pelo braço onde a vespa ferrou? Olhe… tanto assim que me deram esta cor aqui amarela – mostrava a pulseira que lhe garantia ser doente urgente.
Justificada a presença no hospital saiu da zona de balcões e veio até quase à entrada da triagem. Viu que o acesso tinha um segurança fardado e, não fora o homem embirrar e fazê-la sair, para carimbar a receita e metê-la dali para fora, voltou para dentro – agora escondendo a receita e mostrando à evidência a fita amarela que lhe enrolava o pulso.
cá outra vez, “dona Estrudes”. Mostre-me lá a sua ficha….hum…tem telefone de alguém para a vir buscar?
ai menina. Sei o meu e foi um trabalhão para o decorar. Mas lá só está a cadela. Os filhos abalaram ontem para o Alentejo para passar o Natal. E a cadela não lhe vai responder.
está sozinha, dona Gertrudes.
tou!
quer trazer as suas coisas ali para a salinha e comer uma filhós connosco?
e não preciso aviar a receita?
avia amanhã de dia. Também, a esta hora, tínhamos de ir à procura de uma farmácia de serviço… avia amanhã de dia.
ah! De dia, está bem. De dia chegam os meus filhos que foram para o Alentejo. A cadela, está cuidada, tem de comer e beber…
e o braço da picadela, ainda lhe dói?
hum… com a filhós e um chá quente é capaz de passar!




Para memória futura: O Hospital Fernando Fonseca recebeu, nesta noite de Natal, quatro casos não clínicos. Pessoas que ali quiseram passar a noite. Comeram filhoses. E levaram receita de pomada e comprimidos para a febre. Não lhe fossem fazer perguntas acerca de taxas moderadoras e de como elas deviam travar idas à Urgência

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Barda Merkel

Se fosse na Alemanha, o homem barbudo, sem história, não era operado. Com esta idade, não valeria a pena investir – dizem.


O Bloco Operatório deve ser a antecâmara entre o espaço da terra e o sossego dos deuses. Só pode. Tendo em conta a sofreguidão do mal que leva alguns a ficarem ali, despojados de tudo, deitados e à mercê de um grupo de gente com máscaras verdes, só uma grande dose de poderes extraordinários e de pessoas extraordinárias permite que se entre ali por um fio e se saia – não digo cantando e rindo – mas com mais alguns quilómetros de reserva para palmilhar.
Vem tudo isto a propósito de uma visita ao bloco para acompanhar dois médicos que fazem parte dessa gente extraordinária e que tinham pela frente a tarefa de estancar (espero não estar a dizer asneira) uma hemorragia de um indigente a quem estômago e duodeno resolveu pregar partida. Como? Esburacando-se!
Assim. Sem mais nem quê! A pele do estômago e dessa coisa que dá pelo nome de duodeno – assim uma espécie de passagem prévia para os intestinos -, esfarelou-se e deu em acelerar o caminho do fim do homem barbudo a quem ninguém conhecia história. O sangue, em correria desatinada pelo corpo, chegava ali levado pelas artérias que se passeiam pelo estômago e pingava. Pingava ao ponto de se ter notado por artes da ciência médica que o homem de quem ninguém nada sabia estava com um pé e meio do lado de lá e meio pé cá deste lado.
O desafio de ver uma operação com tripas à mostra, qual voyeurismo bacoco, assumiu-se como assunto sério quando o Carlos Martins e a Isabel Aleixo, os cirurgiões que serviram de anjo da guarda do barbudo indigente, se me dirigiram com a pergunta “queres ver salvar uma vida?”. Assim, literalmente.
E não, não era presunção. Era facto. Durante duas horas, após uma incisão do peito ao umbigo que meteu mesmo as tripas à vela, o Carlos e a Isabel suaram, gesticularam, deram pontos a preceito (muitos pontos), afastaram gorduras e arrepanharam carnes, inundaram de soro o abdómen e aspiraram soro e sangue até só aspirarem soro. Quer-se dizer: até redesenharem o estômago e o duodeno do barbudo sem nome, sarando-lhe a ferida que lhe nascera fruto de mau trato de alimentação e outras diatribes.
Mas não foi só o Carlos e a Isabel. A enfermeira Rita andou num ver se te avias a não deixar que faltassem compressas, tesouras e linhas de coser, as médicas anestesistas não perderam um minuto distraídas do monitor que deixava o homem barbudo continuar vivo e substituíram três unidades de sangue. Tantas quanto o homem deitara fora pelo buraco que lhe atestava má vida e menos vida.
O calor no bloco aumentou à medida que a cirurgia avançou. Fosse por avaria do sistema de refrigeração da sala, fosse porque o assunto era sério e a energia acumulada no local subia a temperatura. A enfermeira que “estava” de instrumentista tinha resposta pronta, como se vê nos filmes, aos pedidos de tesoura, e de compressa, e de linha, e de soro, e de tudo… O calor era tanto que o homem barbudo esteve quase a sair do bloco e a subir (ou descer?) para lá daqui. E a enfermeira instrumentista, sem desatinar o olhar, pediu para lhe tirarem as meias de lã que lhe afagava as pernas até ao joelho.
Carlos Martins rodava a cabeça sobre si auto massajando os músculos retesados do pescoço, por força da atenção que as tripas, o estômago e o duodeno do homem barbudo e sem casa, justificava. Isabel, cantou Aurea e soletrou na perfeição “busy for me”, nomeadamente na parte em que se diz “I try every day, I cry every night for a second of your time”. Para a intervenção cirúrgica do indigente salvo em duas horas, valia o I try every day.


Em tempo:


Arrumada a questão, fechado o retalho do estômago e duodeno, agrafada a linha direita que fora buraco de acesso às tripas, salvo o homem barbudo, o momento de relaxe foi passado na sala de descanso – um espaço que serve para conversar, comer, passar pelas brasas, desconversar, dizer mal e bem do governo, dos políticos, dos doentes, dos colegas… dos políticos. Dos políticos.


Se fosse na Alemanha, o homem barbudo, sem história, não era operado. Com esta idade, não valeria a pena investir – dizem.
Sendo assim, Barda Merkel!




terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Uma história de Natal


Conhece-os pelos nomes, pelos pais e pelas mães, os ausentes e os presentes, os desempregos e as necessidades especiais. Conhece-os pelas letras, pelas linhas, pelos risos. Sabe-lhes das tristezas, dos defeitos, dos almoços, das violências, das doçuras.

Tão séria e tão risonha, tão sarcástica e ternurenta, percorre  mundo a direito, percorre a vida que curva, percorre a cinza que incendeia. De memórias se fazem livros, de vontades se fazem dias, de simplicidade se fazem aqueles que dão o tempo, os dedos, as fantasias. Livros e desenhos, ecritores e pintores, a cada um uma palavra, para cada nome o elefante, ou o sol, ou a menina. Das memórias se podem dar pequenas grandes felicidades.

Feliz será este Natal, pelas mãos da Professora, de uns quantos fortuitos mecenas, de Alice Vieira, Afonso Cruz, Rita Taborda Duarte e Luís Henriques.

Assim será.



 Sofia Loureiro dos Santos
Uma história de Natal

Victoria Ward 


Estava demasiado frio, até para Natal. A consoada tinha-se passado como de costume, o dia cheio de cozinha, açúcar e mal contido tédio, a noite de murmúrios e silêncios desconfortáveis, histórias repassadas e revisitadas, rasgar papéis, embrulhar sorrisos, tudo o que de bom e de mesquinho veste as festas familiares.

A tarde já parecia noite, o céu escurecido ameaçava chuva, o vento desabotoava o casaco. Entrou na enfermaria quase deserta, com o característico levitar da doença e da desesperança. No quarto apenas uma cadeira preenchida, com um corpo magro, branco e leve. Subiu-lhe o soluço mas guardou-o, em respeito por quem sofria. A razão da sua culpa, da sua infinita insónia. Não haveria mais perdão para o erro, para o descuido, para a distracção.

Os olhos abriram-se e reconheceram-na. Sorriu. Abraçou-a. Desde aquele momento todos os dias seriam riscados do calendário, contados como se fossem preces, passados em permanente sobressalto. Talvez dali a uns anos se permitisse sentir-se livre. Talvez dali a uns anos voltasse a ser Natal.

Sofia Loureiro dos Santos

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Morder onde mais dói

Há alguma razão objectiva para que as doenças mordam onde mais dói? É como se cada mal, daqueles que ocupam e preocupam, tivesse um método de rigoroso para fazer mossa a sério. Uma gripe num futebolista? Não! Isso é lá maleita para futebolista. Um estiramento muscular, isso sim… Pé de atleta num escriba? Não querem lá ver… vamos dar-lhe um acidente vascular cerebral para ver se fica tolhidinho dos membros que teclam e marado da cabeça a ponto de não dizer coisa com coisa. E por aí adiante: uma afonia a um cantor, uma dislexia a um tribuno, uma infecção na boca a um pivot de televisão, um cancro a…
Um cancro a…
Eh lá! Parece que este não escolhe. É estapafúrdio e leva a eito.
Um médico, daqueles amigos que todos os dias dá em operar bichos, alguns deles bem badalhocos que cuspiram gafanhotos para além do espaço onde nasceram, explicou-me há dias que o cancro hoje, é detectável com mais frequência porque as pessoas duram mais. Assim… Como é uma doença que aparece tarde, é detectada. Antes as pessoas morriam mais cedo. O cancro não tinha tempo de apanhá-las.
Se é assim, está bem.
Se fosse assim estava bem.
Um gajo agarra-se à ideia de que “é uma doença que aparece tarde” e ganha alento para pensar que foge dela. O mal é que à volta, ma mão já não chega para contar os amigos perdidos depois de embalados pela doença que era suposto chegar tarde e que, afinal, chegou à hora do lanche. Numa altura em que ainda sobrava tempo e engenho para curtir e gozar o dealbar do dia com os olhares de velho.
O maldito chegou sem ser convidado, de mansinho, disfarçado de incómodo.
- Estás com uma voz estranha!
- Estou? Não é nada! Estou rouco.
Já o bicho se instalou na laringe para jogar ás escondidas com as cordas vocais.
- Estou empanturrada. Sempre que como ovos fico assim…
Pois, pois! Empanturrada… o bicho já se lhe assomou ao estômago dando-lhe o fastio dos fartos.
- Sempre que faço força parece que sinto uma bola a saltar pela virilha. Malvada hérnia…
Antes fosse – que aquilo é corte de mão travessa, linha de cozer, jeito e um pedaço de rede de malha proibida para a pesca, e a hérnia está amanhada e a tripa calcada no sítio onde deve estar. Já o cabeçudo já desliza pelos intestinos como se lhes tivesse tomado conta sem dar conta.
O cabrão do cancro é democrático, vai a todos, não escolhe os que morde nem trinca onde mais dói, mas nem por isso deixa de ser cobarde. E parvo. Aparece sem ser convidado, a desoras, pé ante pé antes que se lhe esparrame as fuças quando ele se prepara para crescer.

À minha amiga apareceu na mama. Que é sítio onde o tino se perde e onde ainda se pode balbuciar um gu-gu-dá-dá porque dá gosto crescer apegado ao mamilo.
Ao meu amigo apareceu no estômago. Que é sítio que paga as perdidas do tino.
Como se a cabeça não tivesse juízo.
Embora isso não interesse para nada ao parvalhão que me leva os amigos.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Corte e Costura

Há alguma razão objectiva para se ouvir gabarolices a propósito de uma qualquer intervenção cirúrgica? Porque será que quem as fez as exibe como se medalhas de bravura se tratassem? Falam da vesícula e do apêndice como se falassem de um petisco ao fim-de-semana. Seja por influência dos canais televisivos que banalizam as cirurgias seja porque faz parte desta necessidade de se ser corajoso na selva, falar de operações tornou-se corriqueiro. Mais: quem as fez julga-se melhor do que outros. E não, não é naquela perspectiva infantil em que “o meu é maior que o teu, nha, nha, nha, nha, nha, nha!”. É mesmo gabarolice bacoca.
Mas… será assim?
A anestesista chegou bem perto e recomendou que pensasse em algo simpático. Sei lá… para ficar perto de casa, deixasse que a mente divagasse pelas praias do Guincho. Nã… do Guincho não que agora está um frio do caraças… Okay. Praias do Brasil. Parece bem, fala-se português e dá para arregalar a vista. Não é que agora os pensamentos paradisíacos sirvam de alguma coisa. Um tipo sente-se nú, está nú, e despido de presunção. Pode armar-se, crescer na maca, mas está desarmado. Não pode fugir para lado algum, tem ventosas coladas no peito (vai ser bonito para as tirar de cima dos pelos, vai) e ainda por cima taparam-lhe a visão para o resto do corpo. Olha em para baixo, para os pés, e vê lençol; olha para cima e vê dois focos que ferem o olhar; olha para o lado e vê gente de máscara. Se os olhos são o espelho da alma, os olhos que se vêem não espelham coisa nenhuma. Ainda dá para imaginar que por detrás da máscara se pode esconder uma mulher de rara beleza, seja ela cirurgiã, enfermeira ou anestesista. Mas…. Nesta altura o que se pensa mesmo é se, depois, quando tudo acabar, se vai acordar vivo e a mexer os dedos dos pés.
Ao estender o braço para a picada que antecede aquela viagem que a máscara de anestésico proporciona, pensa-se que ou á agora, ou nunca. Depois do líquido nos entrar no sangue e nos atazanar a cabeça, não há nada a fazer. Estamos nas mãos dos senhores da máscara, lencinho da cabeça e luvinhas de borracha para não se estragarem. Ou não estragarem quem vão cortar.
Agora, pelo menos neste caso, quase não se corta.
A vesícula, que é uma coisa que nos frangos aparece verde e colada ao fígado, deu-lhe para criar pedra e desatinar numa agonia permanente que…
blhec, que enjoo.
Daí vieram as dores na barriga o arroto a ovos podres – embora supostamente nunca se tenha comido ovos podres (é bom que não se tenha comido!...) – e o veredicto dito com uma simplicidade que até assusta.
Vamos ter de cortar isso e deitá-la fora.
Assim.
Como se aquele pedaço de carne em forma de saco contendo um líquido lá dentro e que dizem auxiliar a digestão, não nos fizesse falta nenhuma. O corpo é uma coisa estranha. Está cheio de peças que, afinal, parecem estar a mais. A médica disse-me que não ia fazer falta. Já do apêndice, esse penduricalho que é constantemente referenciado quando se falam de intervenções cirúrgicas, também se diz não ter qualquer função nenhuma nas pessoas adultas. Não faz falta mas para dar chatice, é o primeiro a aprimorar-se. Aparece mansinho como uma dor que se desloca do estômago para a barriga e fixa-se ali, do lado direito como uma faca a esfrangalhar-nos a paciência até ser tirado pela nobre arte de corte e costura dos cirurgiões.
Agora era a vesícula…
Três furinhos na barriga, vai poder ir à praia sem costura e amanhã está em casa. Não custa nada…
Foi isso que disseram.
Não custa nada. Não custa nada… pois não: A eles não custa nada.
Eh pá! O raio da barriga é funda. E gorda… olha para isto. É só coisas amarelas. Até aqui, junto à vesícula… é só coisas amarelas….
A médica cirurgiã já perscrutava as entranhas em busca da vesícula que havia de separar do fígado e não se eximia de tecer comentários. Na viagem que a dona da vesícula fazia agora, fosse pelas praias do Brasil fosse por onde fosse, ouvia-se ao longe….
É gorda.
Tem coisas amarelas.

Em pouco mais de meia hora, esburacou-se a barriga em três pontos e, através deles, manipulou-se o fígado, laqueou-se a cística de forma meticulosa – que faz lembrar o ponto cruz da minha mãe – e cortou-se a vesícula pela base. A vesícula, a tal bolsa muscular que se enchera de pedras e enjoara o tino dos últimos dias, estava, pouco tempo depois da recomendação de bons sonhos, morta, despejada de líquido verde e azedo, a repousar num copo para análise.

Os buracos na barriga foram agrafados…
Aos poucos, com estímulos que, por brincadeira, podem passar por cócegas no céu da boca, deixa-se a praia do Guincho ou de Copacabana. E sai-se dessa viagem com o mesmo feitio embirrante como se fosse verdade. Como se tivessem acordado aos empurrões e interrompido o sonho bom. As luzes no tecto começam a aparecer aos poucos a ocupar um espaço que não era suposto ocupar na praia onde se esteve…
Deixou-se para trás a areia, o mar revolto mas simpático e as imagens de tanga que se supõem nas boas praias.
Ficaram as coisas amarelas.
É gordura e fica para depois….
 

Obrigado à Marta, à Wilma e ao Vítor Nunes. Os cirurgiões que me têm satisfeito a curiosidade sobre o que temos por dentro. Com corte, costura e coisas amarelas

domingo, 4 de dezembro de 2011

Hoje somos todos de Caxinas


Hoje somos todos caxineiros. É verdade que desde que soube que o Fábio Coentrão era de Caxinas que tinha um especial afecto pela zona. Recuperei-o depois de achar que aquilo era mal afamado por força de ter visto nascer Paulinho Santos e André, dois sarrafeiros dos blues nortenhos. Hoje, a afeição por Caxinas assumiu o pleno depois de ver os seis pescadores do lugar serem recuperados depois de andarem à deriva mais de 60 horas.
Duas noites numa balsa de borracha mal amanhada mas que lhes garantiu, tal o mal amanho da coberta vermelha, o salvamento pela tripulação do um heli da nossa Força Aérea. Gente grande. Uns e outros.
O pior medo que temos, os que estamos aqui, é que nos deixem sozinhos, sequiosos, sujos e com fome. Às vezes, quando a luz se apaga, cada um de nós que está aqui internado, com o sono demasiado leve por dormirmos tempo demais durante o dia, dá por si com medo de bichos ou pensa que está num barco à deriva. Por vergonha, quase nunca dizemos a verdade quando tocamos a campainha para que alguém venha ter connosco. Aqui ao meu lado, o meu parceiro de enfermaria costuma dizer a quem vem ao som da campainha que está afogueado – quando tem roupa a mais – ou que tem frio – quando o cobertor lhe caiu aos pés. Toca à campainha porque sim e porque não. Dá gosto falar de noite quando não se consegue dormir.
À deriva, os pescadores de Caxinas, tiveram a mesma ânsia que nós temos até vermos os resultados dos exames. Sem sabermos se vamos para melhor, arredando o mal que nos trouxe aqui, ou se vamos “desta para melhor” por o mal(dito) ter mais força. Os pescadores de Caxinas, conta o Pedro Coelho na SIC, mantiveram-se confiantes em Deus e Nossa Senhora de Fátima. Nós, aqui, ganhamos-lhe na fé: também acreditamos nos que tratam de nós todos os dias.
Aqui, ao contrário da balsa que o jornalista compara a uma tenda de campismo, ainda temos quem nos acuda a cada toque de campainha. E somos todos médicos uns dos outros. A cada queixa partilhada, há-de haver quem já tenha passado pelo mesmo e, ainda assim, se tenha safado. Ou, pelo menos há-de haver uma história parecida na família ou vizinhança.
Na família ou vizinhança
Não há queixa que se faça, no espaço comum da enfermaria, que não tenha resposta entendida.
- Oh amigo… deixe-se de desalentos! Uma vizinha minha entrou no hospital pior que você em dobro e passados quinze dias estava arribada e a desatinar a cabeça lá do pessoal de casa outra vez…
Os médicos e enfermeiros são os mestres da nossa balsa e não nos deixam à deriva… tal e qual José Manuel Coentrão, o mestre da Senhora do Sameiro de Vila do Conde. Conta-se que a dado momento, em maior desatino da cabeça de um dos seus pescadores, lhe espetou com dois socos e o amarrou para assentar…
É tal qual como aqui. Ainda ontem o parceiro da cama do fundo, daquela ao pé da janela, desarvorou num arrazoado de disparates, que o sogro – deus o tenha – o vinha buscar, que lhe tinham roubado as chaves do carro que e agora não podia sair, que a enfermeira lhe tinha posto uma coisa ruim na comida que ele bem sentira o amargo do chinelo de trança que o cuspira….
E continuava a cuspir enquanto se assomava à janela a gritar pelo carro e pelo sogro.
E veio a enfermeira a sério que o amarrou e se não lhe deu dois socos, bem que deveria ter dado que aquilo era um desatino de palavrões que alertou os vizinhos das enfermarias do lado…
Hoje, o nosso parceiro ainda está como o pescador. Nas palavras do jornalista, “ainda navega por águas revoltas”. Ainda não se lembrou nem lhe veio à ideia que o já o agarraram a preceito ao ponto de estar a salvo do sogro, da janela e do veneno. Lá, em Caxinas, foram os tripulantes da Força Aérea. Aqui, foi mesmo o médico interno que estava de serviço.
Hoje, ao vermos aquilo, com os homens a serem salvos e as mulheres a despirem o luto que já tinham antecipado, sentimo-nos todos caxineiros.


Sou do tempo em que o Nuno Silveira e o Carlos Barbosa eram os relações públicas da Força Aérea. Os melhores que passaram por Alfragide e que tomaram a peito a nobre tarefa de divulgar estes salvamentos da nossa FAP.
Mas isso era no tempo em que eu ainda andava de avião e não corria o risco de naufragar

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Os que Deus protege e ainda não guarda



Estar internado ao feriado não tem graça nenhuma. Está bem…estar internado não tem graça. Ainda assim, hoje, há mais confusão à volta. Parece que as pessoas cumpriram o ritual dos dias em que não se trabalha: saíram pela manhã – sendo a manhã à volta do meio-dia -, foram ver as arribas do Cabo da Roca, seguiram sempre à beira-mar até à Boca do Inferno. Pelo caminho ainda simularam parar na Malveira da Serra – onde se come cozido aos feriados. Ouviram na rádio que 2012 vai ser um ano ainda pior – coisa que não se percebe – e estranharam que com tanto anúncio de crise, de tanta falta de dinheiro, os parques de estacionamento dos restaurantes do Guincho, aqueles onde se come com as mãos, estejam enxameados de carros de todas as marcas...caras. Todo o percurso foi feito com a intenção firme de não ultrapassar os 60 quilómetros/hora para ver se se consegue cumprir o teste do consumo da marca e não passar dos cinco litros aos 100, se bem que amanhã o carro volte a ficar arrumado na garagem estrela, que é aquela que serve o bairro. Com a poupança do combustível e com a resistência à paragem na Malveira da Serra e no Guincho vai-se ao centro comercial, ao cemitério,

 Deus os guarde,

 e ao hospital,

Deus os proteja.

O pessoal aqui da enfermaria está ainda todo na classe da protecção.

A única graça de podermos estar internados ao feriado, neste feriado, é que subvertemos a história. Em 1640 os quarenta  conjurados colocaram os espanhóis de gatas, atiraram o Miguel de Vasconcelos janela fora e tomaram conta das contas da casa. Diz-se que o fizeram porque os burgueses de então estavam a ficar na miséria e os nobres menos ricos. A história repete-se.

Com os que Deus protege e ainda não guarda.

 Aqui, hoje, duas enfermeiras espanholas já me mudaram o cateter, mandaram-me pôr de bruços, palmatearam-me as nádegas para uma injecção a preceito que dói que se farta mas que dizem que é preciso levar às terças, quintas e sábados e, como se não bastasse a submissão que subverte a história, uma médica que pela cor não parece espanhola mas habla como ellos, soube dizer-me que tenho de arrebitar a moral e pôr-me ao fresco quanto antes que agora a minha doença já é da mona e não do corpo como antes parecia que era.

Face a isto, faz bem quem decide acabar com este feriado da Restauração. Para quem aqui tem passado os últimos tempos, confinado ao espaço que está disponível, um conjunto de elevadores em cada extremo do corredor central, quatro casas de banho, umas vinte enfermarias, salas de médicos, dois gabinetes onde estão enfermeiros e enfermeiras, uma sala de sujos (que é onde alguns de nós devíamos de estar de vez em quando), a alegria de ouvir espanhóis alarga-nos os sonhos e faz-nos lembrar os tempos bons. Os tempos em que já não se precisa de trazer caramelos de Badajoz às escondidas mas em que se pode inspirar a indignação contra esta Europa esquisita nos jovenes da Puerta del Sol. Ou seja: com os espanhóis a dar-me palmadas no rabo e injecções, a tratar de mim e a pôr-me bom da tripa e da mona, a dar o mimo das palavras quando as visitas não têm feriado e por isso não aparecem, a história da defenestração do Miguel Vasconcelos não merece a honras do feriado. Embora seja ao feriado que a malta nos vem ver.

Os que Deus protege e ainda não guarda.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Vó Lena

O Hospital Fernando Fonseca é, para além dos que mais casos de rejeição referencia, aquele que tem crianças para adopção mais tempo nas suas enfermarias. Em boa verdade, porque não há capacidade de resposta da Segurança Social face às solicitações que lhe são feitas.
A carta que se segue foi "escrita" à enfermeira-chefe de Neonatologia, por uma reguila que esteve cá cinco meses até ser adoptada. A mãe biológica, toxicodependente, chamou-lhe Bruna e deu-a para adopção. Nós chamámos-lhe Teresa. Nasceu a ressacar de heroínas (com síndrome de abstinência, como dizem os técnicos) mas agora há-de andar a pavonear-se na beleza dos seus meses reguilas.

Vó Lena
Quando leres esta carta é sinal de que já se acabaram as férias para ti. Para mim, acabou esta coisa de ser o centro das atenções de pessoas mil. Perdemos as duas: tu, o sossego; eu, o rebuliço.
Não é certo que os netos peçam meças às avós. Mas, neste caso, não sei quem vai perder mais: se tu, se eu!
Dizem-me que és tu que me perdes a mim. Eu acho que não. Dizem-me que eu, afinal, ganhei finalmente aquilo que todos os meninos têm por Direito: Uns pais. Está lá, na Carta de Direitos da ONU: toda a criança tem direito a uma família. Dizem-me assim que eu vou ter uma família. Dizem. Os estúpidos. Então… haveria nalgum sítio de Portugal alguém com uma família maior que a minha?
Queres ver?
Olha… tinha-te como avó. O que até dá um certo “sainete”: ser neta da enfermeira-chefe. Acho que os outros miúdos me tinham respeito por isso. E, depois, se bem que o hospital não fosse um quartel, sempre se podia adaptar a máxima militar de que “a velhice é um posto”. E está bom de ver que estando eu no hospital há cinco meses (aliás, não conheço outra coisa que não seja hospital), já era… já era pr’aí “generala” de Pediatria.
Depois, tinha as tuas ajudantes de comando. Seriam os tenentes-coronéis cá do sítio (ou lá do sitio. Conforme a hora em que me estiveres a ler): mandam, fazem cara de má, dão ordens e assinam papéis mas, no fundo no fundo, haviam de encontrar sempre um bocadinho para me desentorpecer as pernas e estimular – como dizem os enfermeiros.
Depois… já viste quantos subordinados teus – e amigos meus – eu vou perder? De certeza que me vou esquecer de muitos. Mas deixa-me lembrar alguns (só para provar o tanto que perdi):
Começo pelos estrangeiros: correram os teus bisavôs com eles à paulada e eles cá estão de novo, os espanhóis: bem feito que me mudaram de vezes as fraldas (nem queiras saber, então, nestes últimos dias quantas vezes foram!!!). Cá para mim, eles já se esqueceram de Aljubarrota. Só pode ser assim: cada pedaço de uma sarda da cara pintalgada da Vega era um mimo para mim. E esse é só um exemplo da subordinação espanhola ao poder do coração português.
Mas há outros. Os homens sempre tiveram um fraquinho por mim. Não há muitos – é verdade. Mas cada um deles que me limpou do vício nos primeiros dois meses e me viciou em mimo nos últimos três deu-me estaleca para enfrentar a voz masculina que agora vou ter todos os dias. Afinal, num galinheiro onde mandam as galinhas, é bom conhecer o timbre do galo. E agora, na nova casa, quem sabe se não é o galo que manda…
Falei na Vega por causa das pintas. Injustiça. Tenho de falar na Ana Luísa que me tornou vedeta de filme; na Inês que me aturou as coceiras dos primeiros dias, na Carla, na Filipa, na Sofia, na Inês, na Paula – todas elas recordações antigas, quase sumidas, por força daquilo que tu sabes que eu tinha e já não tenho.
Agora tinha outras. E já estava a habituar-me. A Marília, sempre reivindicativa mas muito amiga; a Sónia cuja sobriedade é o garante do sucesso; a Raquel, essa reguila loura; a Ana, a Catarina, a Patrícia, tantas e tão boas que nem tu sabes.
Aqui para nós, está bom de ver que as que não têm o nome nesta carta vão achar que não me lembrei delas. Claro que lembrei. Claro que lembro. Só que acho que esta cabeça tonta não dá para decorar todos os nomes. Conheço-as as todas. Quase tão bem como me conhecem a mim. Pede desculpa a elas.
E depois, se bem que o meu mundo seja grandemente pequenino, com fronteiras desenhadas no limite da Pediatria, não posso esquecer que me abristes outras portas. E me levaste ao estrangeiro – ainda que o estrangeiro fosse no andar de baixo -, onde moram os tios ricos. Lembras-te de me vestires a preceito para visitar os doutores – com aquela roupa, quase sempre nova, ainda com goma nas golas, mas bem cheirosa e apropriada para visitar doutores?
E lembras-te como, ainda que doutores, elas soletravam “gugu-dada” como qualquer outro que não seja doutor? Já viste que é nos gestos de amor que somos todos iguais? A minha mãe biológica, agarrada – deixando-me agarrada a mim – sempre que me afagou foi como os doutores. Tá bem que se podia esquecer logo a seguir. Mas o afago é igual. Aqui, lá em baixo, na rua, na China ou no Bairro 6 de Maio ali para a Damaia. O amor não se mede por títulos. Ainda bem.
Dá um beijo a eles por mim. E pede-lhes, como se fosse eu a pedir que, sendo eu um caso arrumado, focalizem todas estas atenções para os que cá ficam. Eu sei que para os teus ajudantes de comando e subordinados nem isso preciso de pedir. É a vocação deles. É a vida deles. Pode dizer-se, aqui e ali, que ninguém reconhece isso. Eu e os meus “irmãos” de selva reconhecemos. Espero que seja compensação bastante.
E pronto. Havia tanto para dizer e não sei mais o quê mas falta-me assunto. Dá o meu mobile a quem precise. E aqueles sapatos que não me servem; e o conjunto da hello kitty e o resto. Dá tudo mas guarda um pedacito de amor para os que cá ficam. Ou melhor: dá-lhes tanto como destes a mim. E passa a mensagem. Essa é a minha herança.
O tribunal escolheu os meus pais novos. Escolheu-me a família. É a única diferença que tenho dos outros. Em condições normais, a família não se escolhe: nasce quando nascemos (até nisso irei ser diferente. Terei, para os efeitos que não são de lei e onde o tribunal não mete prego nem estopa, duas famílias: a biológica e a que me dão agora por despacho).
Duas famílias? Que injustiça: Três! Três é que são!
A família maior é a que deixo agora, quando me levarem com a papelada.
Quando quiserem lembrar-se de mim, vejam o filme. Eu, é quase certo, vou esquecê-los. A não ser que os meus novos pais, um dia, quando tiver idade para isso, me lembrem que os meus primeiros meses foram diferentes e me mostrem àqueles que agora deixo para trás.
Como sabes, o meu obrigado ainda se limita a um riso – quase pouco dobrado – e a uns sons disparatados. Se eu pudesse explicava-vos, como Lennon fez ao escrever “Across the Universe”, “nothing gonna change my world”. O meu futuro será um espelho daquilo que tu e os outros ajudaram a criar. Ou seja: bom!!
Hoje, “something changes my world”!
PS. Não deixes o Salvador e a Beatriz ficarem tanto tempo aí como eu.
Beijos
Bruna (por parte da mãe), Teresa (por parte de ti), Fonseca (por parte de todos os que me criaram nos meus primeiros cinco meses de vida no Fernando Fonseca)

sábado, 26 de novembro de 2011

Colite divertida? Uma ova!

Depois de anos a fio a comer fumo da soldadura sem que isso lhe desse a volta às entranhas, agora que estava em casa há tempo demais - a gozar a reforma de uma velha Sorefame que dava cor às linhas da CP -, é que os intestinos lhe pregavam dores de cabeça.  E de barriga – está bom de ver. As cólicas eram de tal forma que aquilo só sossegou quando entrou pela porta da urgência do hospital. Já tinha ficha e processo por força de desatinos da tensão arterial mas, agora, a dor vinha de baixo e atravessava-o de lado a lado fazendo-o dobrar os joelhos e segurar a barriga como se os afagos do baixo ventre lhe aliviassem a dor.
Uma diverticulite, foi o que lhe arranjaram no balcão da urgência. Motivo mais do que suficiente para o internamento e uma guia de marcha quase passada para acesso ao bloco operatório. Quando a família se lhe chegou para a primeira visita não soube explicar bem o que se passava. Era uma trampa qualquer que lhe dava uma dor assim como quem sente uma faca a espetar-se-lhe barriga adentro. Ainda que não soubesse o que era uma faca a espetar-se-lhe onde quer que fosse. Uma dor que “ai, ai que dói que se farta!…”


A referência à cirurgia não foi uma grande surpresa. Já tinha ouvido falar que essa era a solução para a diverticulite ou colite divertida ou lá o que raio era que dava dores como o caraças. A surpresa veio depois quando lhe disseram que a operação teria de justificar aquela coisa estranha de andar com um saco em permanência ligado aos intestinos. Isso acabava com a vida social. Isso acabava com a vida. A pensar no amanhã, estimava não ter amanhã. Estava bom de ver que não ia sair mais de casa. Onde já se viu? Sair de casa e dar-lhe uma volta aos intestinos e encher o saco. Ali ao pé dos outros, na rua. Os tempos acabam quando os crescidos retornam às parvoíces dos putos. E o acto de poder borrar-se todo era parvoíce de puto.
Foi nesta canseira, a guerrear com os intestinos antes que eles dessem em guerrear sozinhos e fizessem asneira, que recolheu à enfermaria. O pior – o melhor para ele – viria no dia seguinte pela boca da médica assistente. Os padrões da sua tensão arterial, demasiado altos, não permitiam a operação; uma infecção oportunista nos pulmões também não aconselhavam ao corte. Enfim… ou a colite assumia a condição de divertida e curava-se à força de medicamentos, ou a coisa tenderia a piorar e a dar para o torto.
Curou-se. Antibióticos, comprimidos amarelos, azuis, de duas cores, de forma achada ou comprida, revestidos ou simples a saber mal, xarope com sabor a mel e a flores, animou-lhe os divertículos e curou-lhe a infecção. Essa. No hospital há duas semanas vieram atrás daquela, da que a tinha levado ali, outras infecções. Foi nos pulmões, na bexiga, foi gripe e pneumonia, foi uma colecção de maleitas que não lhe deu tréguas enquanto esteve internado. Sentia-se inchado, mais gordo do que o que era e estava naquela fase em que não sabia se tinha sido melhor ir à operação e ficar-se ou ficar-se sem operação.
Nem uma coisa nem outra. A esperteza dos antibióticos conseguiu superar a manha das infecções. Estava a ficar bom. Estava?
“Estou todo borrado! Estou todo borrado!” – tocou a campainha vezes sem conta. Os intestinos, os que o tinham levado ali, teimavam em torná-lo bobo. Sentia-se acabado. Lembrava-se…
Os tempos acabam quando os crescidos retornam às parvoíces dos putos.
E o acto de borrar-se todo era parvoíce de puto.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

No dia em que se fala de violência doméstica...

Num andar desajeitado próprio de quem não tinha mais de metro e sessenta de altura mas, em compensação, juntava bem mais de 80 quilos num metro de largo, a mulher foi estrategicamente afastada para uma conversa a despropósito mas propositada para me deixar entrar enfermaria adentro sem suscitar perguntas. De olhos arregalados, espantados, diria, ela estava ali de baby-grou rosa, no carrinho da Chico, chucha e muita confiança na assistente social que me acompanhava e pouca, nenhuma, decerto, em mim.

Quando me ajoelhei a seu lado para lhe ficar ao nível da face esboçou um beicinho e arregalou os olhos como se a figura de um homem lhe trouxesse um sinal de alerta. Já me acontecera antes, vezes tamanhas, quando decidia – sabe-se lá porquê – passar tardes a fio junto dos filhos das mulheres presas em Tires. Os putos berravam sempre sendo-me então explicado que não estavam, numa prisão de mulheres, habituados a ver homens. E os pais, nem sequer os conheciam.

Ali era diferente: definitivamente, pela história que trazia atrás de si, aquela bebé não gostava de homens porque eles eram portadores de porrada. Não foi difícil, ainda assim, conquistar-lhe a confiança: de joelhos, já se disse, estendi-lhe o indicador que agarrou como que a dizer “não me faças mal” e ronronou com o pescoço à volta de si num gesto de mimo que ainda ninguém lhe conhecia. Fazendo uso das manhas de pai – se bem que com 17, o miúdo lá de casa já tenha pouca disponibilidade para mimos – um afago com a mão livre –a outra estava bem presa pelos deditos numa garra pouco maior que uma noz – abriu caminho para uma conversa longa e bastante para me deixar vidrar os olhos e justificar uma vontade tamanha de a trazer para casa num fim-de-semana que desejaria não acabar tão depressa.

Falámos. Falámos muito. Falámos tanto que depois de um dedilhar da face e um cuidado tamanho em não lhe tocar nem nos braços nem nas pernas – aqueles com os artefactos que permitem a canalização de suprimentos, estas a solidificar das cinco – cinco! – fracturas com que chegou ao hospital, diz-se, depois de sovada pelos pais. Ou pelo pai. Ou pela mãe. Ou por quem quer que seja que não se sabe quem é e só se saberá quando o ministério público de Sintra tiver tempo para mandar investigar..

Sabe-se isso sim, que a Ana Sofia tem nome, seis meses e entrou-nos porta dentro vítima de maus tratos. Sabe-se, já se sabe, que a Ana Sofia vai ser entregue a família de acolhimento para adopção. Algo que nem sequer parece preocupar a mãe - que entretanto já está se presume prenhe. É a terceira vez: a primeira filha foi-lhe retirada por negligência; esta vai pelo mesmo caminho por negligência e violência (ou cumplicidade na violência); a terceira, a que vem aí, logo se verá.




Quando saí da enfermaria – para a mãe entrar – o embevecimento pela Ana Sofia era proporcional à raiva que tinha para com aquela mulher. E nem quando ela aconchegou a filha ao peito, para lhe dar de mamar ao mesmo tempo que a Ana, com a mão do braço não canalizado, afagava, de cima para baixo em pinceladas perfeitas, a parte de cima do peito da mastronça, mudei o sentimento. Sobretudo, porque soube que depois de cada tareia de deixar marcas, o choro da pequenita era sufocada no teta da mãe. Devia ter estranhado, desta vez, que a mama lhe chegasse à boca depois dum momento de festas e mimo.

As coisas estão a mudar, Ana Sofia. As coisas estão a mudar.

Sevilla

Fui ali ao lado dar ração aos cavalos pura raça espanhola.
Amanhã retomo as crónicas...

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Plaquetas de Lã



Embora o Hospital Fernando Fonseca seja uma Babel bem sucedida, estou em crer que entre nós, muitos foram aqueles que na terça-feira deram um pulo na cadeira a cada golo de Cristiano Ronaldo, abriram a boca de espanto com o golaço de Nani e esboçaram um sorriso de orelha a orelha perante os remates vitoriosos dos habitualmente abstinentes Miguel Veloso e Hélder Postiga. E nem sequer reclamaram de Paulo Bento o facto de ter trocado o ala do Manchester pelo agora granadino Carlos Martins.
Hoje percebemos como foi magnânimo esse gesto do seleccionador português. Carlos Martins está a sofrer as dores de um pai cujo filho, de três anos, sofre de uma estúpida doença degenerativa que se caracteriza pela falência da medula óssea e dá pelo nome tonitruante de aplasia medular. A sua entrada em campo ter-lhe-à aliviado o espírito.  Ainda que o Carlos tenha rematado de uma forma atabalhoada para aquele que podia ter sido o sétimo golo da selecção, hoje ninguém se lembra desse erro. Hoje, preferimos todos recordar a fotografia que acompanha este texto e que foi, comme il faut, captada em pleno Estádio da Luz.


Contada a história do Carlos, o país uniu-se à volta da sua mágoa e está a ser desencadeada a maior onda de solidariedade para doação de medula que alguma vez foi feita em Portugal. A publicidade à volta do caso há-de fazer com que o Gustavo – assim se chama o puto reguila do Carlos Martins – ajude um boa parte dos que, como ele ou com outras doenças, necessitam de constantes transplantes de medula.
Não é exclusivo nosso, decerto, mas conseguimos – até nos momentos piores – mostrar essa excepcional capacidade de nos mobilizarmos em actos de solidariedade.
E o que tem tudo isto a ver connosco, Hospital Fernando Fonseca?
Tudo!
Há pouco mais de dois meses lançámos, no Fernando Fonseca, uma campanha de recolha de roupa para os casos sociais forçados, em momentos de alta, a sair do hospital vestidos com os nossos pijamas ou com roupas mal amanhadas e que seriam as que… estavam mais a jeito. A ideia era conseguir uma bolsa de roupa que pudesse garantir a todos os doentes que, caso necessitassem, teriam uma camisa, um pólo, um par de sapatos, um babygrow, um casaco de malha, algo suficiente para uma alta com dignidade. Puderam, a partir de então, sair pelo átrio principal e não escondidos no banco de trás do carro que os veio buscar. A eles e à nota de alta.
Pois bem. Em dois meses de campanha, chegaram ao gabinete de comunicação mais de três mil peças de roupa, ali levadas por médicos, enfermeiros, administrativos, auxiliares, dirigentes, administradores. Todos, de forma transversal ao hospital, abrangendo todas as classes profissionais do hospital, quiseram mostrar que os doentes, os nossos doentes, deveriam sair do hospital com a nota de alta, é verdade, mas barba feita, a cheirar a malvas e, vestidos com dignidade.
Hoje, quase que atingimos o limite de termos de dizer que já chega de roupa. Temos dado resposta a todas as solicitações e ainda possuímos, em armazém, peças suficientes para um ano de altas sociais entre os mais velhos (nisto de consumir dádivas de roupa, os mais pequenos são menos envergonhados e aproveitaram o momento).
Somos suficiente comedidos para não fazer grande alarde desta campanha solidária que trouxe frutos reais e… muita roupa. Mas somos suficientemente ambiciosos para não nos ficarmos por aqui. Resolvido este assunto, é hora de nos voltarmos para outro. Por exemplo, para aquele que iniciou este texto. O Gustavo e mais “mil gustavos” precisam de medula óssea.
Dizem que não custa nada. São plaquetas que não nos fazem falta. São de lã. É como a roupa…

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Aspirina em Ré Maior


Em dia de Jornadas do Internato Médico, aquele dia onde os “meninos doutores” estão a dar os primeiros passos para o upgrade de “senhores doutores”, a maioria dos doentes internados teve o privilégio de tomar aspirina em Ré Maior. E em Fá. E em Allegro, Andante, Presto… Pianíssimo…. Shiu!

Uma Polka Pizzicato de Strauss acompanhou, na Neurologia, a toma de Coversyl para dominar os ímpetos de uma tensão que teima em subir sempre, enquanto o “Por una Cabeza” de Carlos Gardel, tango, está bom de ver, se definiu como melodia propícia aos labores da equipa de Psiquiatria. Para sossegar o músculo maior que nos corrige os afectos e lhes trouxe enfartes e  deu cabo das coronárias, os doentes de Cardiologia foram prescritos com o tema de John Williams que deu som ao filme Lista de Shindler. Já os doentes de Urologia levaram com o “Divertimento para Quarteto de Cordas em Fá Maior”, de Mozart, para compensar algumas aflições propícias a menor diversão.

Hoje, o Fernando Fonseca deu música aos doentes. Literalmente. Não daquela em sentido figurado e da qual nos queremos ver arredados. Dessa, é crível que os doentes e não doentes ouçam no dia a dia da lufa lufa casa-trabalho, trabalho-casa. Música de sanfona que atazana os ouvidos e desatina a cabeça e que hoje se ouve constantemente travestida de Syrtaki, Hassápiko ou Zebékiko (tudo músicas tradicionais da Grécia), em acordes de Buzuki - que é o instrumento tradicional dos meninos de Atenas.

 Não!

 Foi música mesmo, tocada por músicos de carne e osso habituados aos palcos do D. Maria ou do S. Carlos, que se passeiam pela Orquestra Metropolitana de Lisboa depois de terem rasgado os primeiros sons de violino na Arménia, na Covilhã, em Cascais ou na Roménia. Liviu Scripcaru, 1º violino é romeno; Marcos Lázaro, 2º violino, é cascalense, Jean Aroutiounian, viola de arco, é arménio (também, com um nome destes!) e Nelson Ferreira veio das faldas da Serra da Estrela. É covilhanense.

Os quatro formam (por serem quatro) um quarteto de cordas. Dispuseram-se a despir o fato de gala que trajam em noites de “bravo” nas frisas engalanadas dos teatros onde eu não vou e os doentes também não. Em vez e esperarem por eles no local de trabalho, calçaram as tamanquinhas e vieram animar corredores, enfermarias e auditório do hospital. Não deixa de ser caricato mas, sinal dos tempos, os quatro músicos profissionais vieram até nós pró bono no dia em que o Teatro Nacional Dona Maria II anunciou a suspensão de toda a programação de 2012 em consequência da austeridade anunciada pelo Governo.

Por nós, podem continuar a dar-nos música…


Para os que não foram ao hospital nem estavam no hospital, enlevem o espírito…





terça-feira, 15 de novembro de 2011

O VIP

Abana a anca e avança o pé esquerdo. Vai acima, arrasta em baixo… avança e repete, vai acima, vai abaixo e pára com a vénia. Luciana e Jussiara ensaiaram a moda até quase à exaustão. Ainda por cima, internadas há semana e meia com males da tripa, está bom de ver que chegavam ao limite do cansaço bem depressa. Por isso ensaiaram quase sempre numa sala pequena, aquela que estava mais à mão e trazia a bondade de não obrigar a grandes correrias. Ainda se cansavam depressa e com pressa tinham de sentar-se para que o fôlego voltasse e o coração se deixasse de tão desaustinada correria. Queriam estar na perfeição para a chegada da pessoa importante. Do VIP. E, se bem que não soubessem o que era isso, sempre lhes explicaram que era pessoa que se passeava na televisão e que era bom de bola, que ia a festas caras, vestia fino e falava grosso.

Quando o Luís chegou, a dança foi feita a preceito tal qual as regras que lhes tinham sido transmitidas nos últimos dois dias pelas educadoras que lhes entretinham os espaços temporais, muitos, entre a sopa de dieta e o lanche de iogurte magro. Coradas, tanto quanto a sua já cor escura permitia ver, dançaram frente a frente com um sorriso daqueles grandes, de orelha a orelha. Não se enganaram uma única vez. E o VIP alinhou na dança que lhe foi feita em exclusivo. Mais: fez-lhes perguntas, ensaiou passos com elas e mostrou-se bem mais desajeitado na dança do que as manas de cor.

Estranho. Não é suposto os VIP saberem de tudo, falarem de tudo, conhecerem de tudo? Este VIP não. O Luís é dos poucos que tendo sido melhor do Mundo, conhecido seja na Ilha de Sukkwan, seja no Bornéu ou ali, na Amadora, se manteve lúcido. Veste simples, fala com todos, habitou-se a que o tratem por tu enquanto trata os outros como entende que deve tratar, com deferência – quando merecem de deferência -, com normalidade quando é para ser com normalidade.

Foi ao hospital garantir que por mais um ano os doutores que vestem um nariz vermelho e alegram corredores e enfermarias vão poder continuar por ali, sabe deus quão roídos por dentro, a espalhar sorrisos. Gargalhadas escancaradas, mesmo, provocadas por quem sabe passar de um momento para o outro de uma cara séria e formal para batatinha, pipoca ou Maria bóia. Nomes aparvalhados que ajudam ao riso.

No Fernando Fonseca, as crianças não têm medo dos palhaços. Ainda bem.

O Luís deu um abraço ao hospital garantindo que os doutores palhaços – assim se chamam os donos dos narizes vermelhos – vão continuar. E quis testemunhar o abraço. Veio de Madrid à Amadora para afagar os mais pequenos – muitos nem o conheciam – e assinar autógrafos e posar para a fotografia ao lado dos mais velhos. Falou à Imprensa, que é próprio de quem é conhecido de lés a lés e saiu com um obrigado. Foi ele que agradeceu ter vindo ao hospital. O Luís é VIP a sério. Chamam-lhe Figo. E é por aí que todos o conhecem.