O Bloco Operatório deve ser a
antecâmara entre o espaço da terra e o sossego dos deuses. Só pode. Tendo em
conta a sofreguidão do mal que leva alguns a ficarem ali, despojados de tudo,
deitados e à mercê de um grupo de gente com máscaras verdes, só uma grande dose
de poderes extraordinários e de pessoas extraordinárias permite que se entre
ali por um fio e se saia – não digo cantando e rindo – mas com mais alguns quilómetros
de reserva para palmilhar.
Vem tudo isto a propósito de uma
visita ao bloco para acompanhar dois médicos que fazem parte dessa gente
extraordinária e que tinham pela frente a tarefa de estancar (espero não estar
a dizer asneira) uma hemorragia de um indigente a quem estômago e duodeno
resolveu pregar partida. Como? Esburacando-se!
Assim. Sem mais nem quê! A pele
do estômago e dessa coisa que dá pelo nome de duodeno – assim uma espécie de
passagem prévia para os intestinos -, esfarelou-se e deu em acelerar o caminho
do fim do homem barbudo a quem ninguém conhecia história. O sangue, em correria
desatinada pelo corpo, chegava ali levado pelas artérias que se passeiam pelo
estômago e pingava. Pingava ao ponto de se ter notado por artes da ciência médica
que o homem de quem ninguém nada sabia estava com um pé e meio do lado de lá e
meio pé cá deste lado.
O desafio de ver uma operação com
tripas à mostra, qual voyeurismo bacoco, assumiu-se como assunto sério quando o
Carlos Martins e a Isabel Aleixo, os cirurgiões que serviram de anjo da guarda
do barbudo indigente, se me dirigiram com a pergunta “queres ver salvar uma
vida?”. Assim, literalmente.
E não, não era presunção. Era
facto. Durante duas horas, após uma incisão do peito ao umbigo que meteu mesmo
as tripas à vela, o Carlos e a Isabel suaram, gesticularam, deram pontos a
preceito (muitos pontos), afastaram gorduras e arrepanharam carnes, inundaram
de soro o abdómen e aspiraram soro e sangue até só aspirarem soro. Quer-se
dizer: até redesenharem o estômago e o duodeno do barbudo sem nome, sarando-lhe
a ferida que lhe nascera fruto de mau trato de alimentação e outras diatribes.
Mas não foi só o Carlos e a
Isabel. A enfermeira Rita andou num ver se te avias a não deixar que faltassem
compressas, tesouras e linhas de coser, as médicas anestesistas não perderam um
minuto distraídas do monitor que deixava o homem barbudo continuar vivo e substituíram
três unidades de sangue. Tantas quanto o homem deitara fora pelo buraco que lhe
atestava má vida e menos vida.
O calor no bloco aumentou à
medida que a cirurgia avançou. Fosse por avaria do sistema de refrigeração da
sala, fosse porque o assunto era sério e a energia acumulada no local subia a
temperatura. A enfermeira que “estava” de instrumentista tinha resposta pronta,
como se vê nos filmes, aos pedidos de tesoura, e de compressa, e de linha, e de
soro, e de tudo… O calor era tanto que o homem barbudo esteve quase a sair do
bloco e a subir (ou descer?) para lá daqui. E a enfermeira instrumentista, sem
desatinar o olhar, pediu para lhe tirarem as meias de lã que lhe afagava as
pernas até ao joelho.
Carlos Martins rodava a cabeça
sobre si auto massajando os músculos retesados do pescoço, por força da atenção
que as tripas, o estômago e o duodeno do homem barbudo e sem casa, justificava.
Isabel, cantou Aurea e soletrou na perfeição “busy for me”, nomeadamente na
parte em que se diz “I try every day, I cry every night for a second of your
time”. Para a intervenção cirúrgica do indigente salvo em duas horas, valia o I
try every day.
Em tempo:
Arrumada a questão, fechado o
retalho do estômago e duodeno, agrafada a linha direita que fora buraco de
acesso às tripas, salvo o homem barbudo, o momento de relaxe foi passado na
sala de descanso – um espaço que serve para conversar, comer, passar pelas
brasas, desconversar, dizer mal e bem do governo, dos políticos, dos doentes,
dos colegas… dos políticos. Dos políticos.
Se fosse na Alemanha, o homem barbudo, sem história, não era operado. Com esta idade, não valeria a pena investir – dizem.
Sendo assim, Barda Merkel!
2 comentários:
Muito bom tens toda a razão.
Caríssimo Dr Paulo Barbosa :)
Deliciei-me a ler a sua aventura no bloco operatório!
A forma como absorveu e interpretou o que se estava a passar à sua volta transformou o nosso dia-a-dia numa missão nobre, que cumprimos com muito gosto e entusiasmo, mas que muito raramente a vemos descrita de forma tão empolgante.
Muito obrigada por este momento.
Cumprimentos, Raquel Abreu
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