Já passavam das onze e a avó “Estrudes" andava pela urgência com uma receita, uma capa transparente onde guardava o bilhete de identidade e uma pequena carteira com documentos menores e uma nota de cinco euros. Tocava no braço de cada um com quem se cruzava e perguntava:
e agora o que é que eu faço?
Uns encolhiam os ombros por não
saberem responder e outros mandavam-na carimbar a receita – que é forma de a tornar boa
para se aviar na farmácia. Estrudes, uma corruptela de Gertrudes, 79 anos,
cabelos brancos curtos e ralos, uns pelos pouco generosos (por serem grandes)
no queixo, ouvia a resposta, passeava-se por mais um ou dos palmos de terra da
urgência e voltava a tocar no braço de um qualquer
e agora o que é que eu faço?
Procurava não perder muito tempo
a ouvir quem lhe dava explicações. Não parecia querer ouvir explicações. Ainda
assim, deu para ver que a receita passada pelo médico apenas lhe indicava uma
pomada. Gertrudes exibia um pequeno penso de compressa no braço direito e, a
quem procurava dar-lhe mais conversa, limitava-se a dizer:
foi uma vespa. Ferrou e andou sem
que eu tivesse tempo de acabar com ela
Com paciência, foi possível
conhecer melhor Gertrudes. Tinha aparecido no hospital levada pelos bombeiros, a
quem tinha telefonado dizendo não poder mexer o braço e sentir um formigueiro
que lhe subia desde o pulso ao ombro desatinando-lhe os gestos. Deve ter dito o
mesmo na triagem já que a classificado como doente “urgente” e dado uma
pulseira de cor amarela – que exibia no pulso que não tinha sido ferrado pela
vespa. Era a melhor maneira de provar, a quem duvidasse, que estava doente e a
merecer olhar cuidado de médico.
pulseira amarela – urgente. Dizem
os livros.
Os bombeiros levaram-na ao
hospital, comungaram com ela os sintomas junto da enfermeira da triagem e
deixaram-na entregue. Agora, na hora de voltar a casa, pouco antes da meia
noite, Gertrudes desatinava com o regresso.
anda sozinha?
e ando bem – respondia com pelo
na venta.
não tem filhos?
foram para o Alentejo.
e em casa?
tenho a cadela.
ai avó, avó! Mostre lá a receita…
uma pomada. Veio à Urgência, na noite de Natal, por uma pomada? Podia ir amanhã
à farmácia.
e ficava sozinha com a cadela e à
mercê do formigueiro que subiu pelo braço onde a vespa ferrou? Olhe… tanto
assim que me deram esta cor aqui amarela – mostrava a pulseira que lhe garantia
ser doente urgente.
Justificada a presença no
hospital saiu da zona de balcões e veio até quase à entrada da triagem. Viu que
o acesso tinha um segurança fardado e, não fora o homem embirrar e fazê-la
sair, para carimbar a receita e metê-la dali para fora, voltou para dentro –
agora escondendo a receita e mostrando à evidência a fita amarela que lhe enrolava
o pulso.
cá outra vez, “dona Estrudes”.
Mostre-me lá a sua ficha….hum…tem telefone de alguém para a vir buscar?
ai menina. Sei o meu e foi um
trabalhão para o decorar. Mas lá só está a cadela. Os filhos abalaram ontem
para o Alentejo para passar o Natal. E a cadela não lhe vai responder.
está sozinha, dona Gertrudes.
tou!
quer trazer as suas coisas ali
para a salinha e comer uma filhós connosco?
e não preciso aviar a receita?
avia amanhã de dia. Também, a
esta hora, tínhamos de ir à procura de uma farmácia de serviço… avia amanhã de
dia.
ah! De dia, está bem. De dia
chegam os meus filhos que foram para o Alentejo. A cadela, está cuidada, tem de
comer e beber…
hum… com a filhós e um chá quente
é capaz de passar!
Para memória futura: O Hospital
Fernando Fonseca recebeu, nesta noite de Natal, quatro casos não clínicos.
Pessoas que ali quiseram passar a noite. Comeram filhoses. E levaram receita de
pomada e comprimidos para a febre. Não lhe fossem fazer perguntas acerca de
taxas moderadoras e de como elas deviam travar idas à Urgência
4 comentários:
Um retrato não só deste dia mas ... que diariamente se observa nas urgências hospitalares ... Infelizmente
Em primeiro lugar Feliz Natal.
Em segundo lugar parabéns Paulo por trazeres à luz esta história onde a cura é da "alma", da solidão e da exclusão.Onde a procura é de uma mão, um sorriso, onde toda a tecnocracia nada tem a fazer.
Desejo de uma boa época festiva
Um "retrato" da vida que cai fora das contas do PIB...
Paulo, deixaste-nos mais um excelente trabalho no qual infelizmente deparamo-nos cada vez mais com a solidão das pessoas.
Do egoísmo de alguns, orgulho de outros.
Mas a solidariedade de algumas pessoas vêem-se nestes momentos.
Forte abraço
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