domingo, 25 de dezembro de 2011

Picada de vespa em noite de Natal



Já passavam das onze e a avó “Estrudes" andava pela urgência com uma receita, uma capa transparente onde guardava o bilhete de identidade e uma pequena carteira com documentos menores e uma nota de cinco euros. Tocava no braço de cada um com quem se cruzava e perguntava:

e agora o que é que eu faço?
Uns encolhiam os ombros por não saberem responder e outros mandavam-na carimbar a receita – que é forma de a tornar boa para se aviar na farmácia. Estrudes, uma corruptela de Gertrudes, 79 anos, cabelos brancos curtos e ralos, uns pelos pouco generosos (por serem grandes) no queixo, ouvia a resposta, passeava-se por mais um ou dos palmos de terra da urgência e voltava a tocar no braço de um qualquer
e agora o que é que eu faço?
Procurava não perder muito tempo a ouvir quem lhe dava explicações. Não parecia querer ouvir explicações. Ainda assim, deu para ver que a receita passada pelo médico apenas lhe indicava uma pomada. Gertrudes exibia um pequeno penso de compressa no braço direito e, a quem procurava dar-lhe mais conversa, limitava-se a dizer:
foi uma vespa. Ferrou e andou sem que eu tivesse tempo de acabar com ela

Com paciência, foi possível conhecer melhor Gertrudes. Tinha aparecido no hospital levada pelos bombeiros, a quem tinha telefonado dizendo não poder mexer o braço e sentir um formigueiro que lhe subia desde o pulso ao ombro desatinando-lhe os gestos. Deve ter dito o mesmo na triagem já que a classificado como doente “urgente” e dado uma pulseira de cor amarela – que exibia no pulso que não tinha sido ferrado pela vespa. Era a melhor maneira de provar, a quem duvidasse, que estava doente e a merecer olhar cuidado de médico.
pulseira amarela – urgente. Dizem os livros.
Os bombeiros levaram-na ao hospital, comungaram com ela os sintomas junto da enfermeira da triagem e deixaram-na entregue. Agora, na hora de voltar a casa, pouco antes da meia noite, Gertrudes desatinava com o regresso.
anda sozinha?
e ando bem – respondia com pelo na venta.
não tem filhos?
foram para o Alentejo.
e em casa?
tenho a cadela.
ai avó, avó! Mostre lá a receita… uma pomada. Veio à Urgência, na noite de Natal, por uma pomada? Podia ir amanhã à farmácia.
e ficava sozinha com a cadela e à mercê do formigueiro que subiu pelo braço onde a vespa ferrou? Olhe… tanto assim que me deram esta cor aqui amarela – mostrava a pulseira que lhe garantia ser doente urgente.
Justificada a presença no hospital saiu da zona de balcões e veio até quase à entrada da triagem. Viu que o acesso tinha um segurança fardado e, não fora o homem embirrar e fazê-la sair, para carimbar a receita e metê-la dali para fora, voltou para dentro – agora escondendo a receita e mostrando à evidência a fita amarela que lhe enrolava o pulso.
cá outra vez, “dona Estrudes”. Mostre-me lá a sua ficha….hum…tem telefone de alguém para a vir buscar?
ai menina. Sei o meu e foi um trabalhão para o decorar. Mas lá só está a cadela. Os filhos abalaram ontem para o Alentejo para passar o Natal. E a cadela não lhe vai responder.
está sozinha, dona Gertrudes.
tou!
quer trazer as suas coisas ali para a salinha e comer uma filhós connosco?
e não preciso aviar a receita?
avia amanhã de dia. Também, a esta hora, tínhamos de ir à procura de uma farmácia de serviço… avia amanhã de dia.
ah! De dia, está bem. De dia chegam os meus filhos que foram para o Alentejo. A cadela, está cuidada, tem de comer e beber…
e o braço da picadela, ainda lhe dói?
hum… com a filhós e um chá quente é capaz de passar!




Para memória futura: O Hospital Fernando Fonseca recebeu, nesta noite de Natal, quatro casos não clínicos. Pessoas que ali quiseram passar a noite. Comeram filhoses. E levaram receita de pomada e comprimidos para a febre. Não lhe fossem fazer perguntas acerca de taxas moderadoras e de como elas deviam travar idas à Urgência

4 comentários:

AQUESTAOSOCIAL disse...

Um retrato não só deste dia mas ... que diariamente se observa nas urgências hospitalares ... Infelizmente

Cecília Longo disse...

Em primeiro lugar Feliz Natal.
Em segundo lugar parabéns Paulo por trazeres à luz esta história onde a cura é da "alma", da solidão e da exclusão.Onde a procura é de uma mão, um sorriso, onde toda a tecnocracia nada tem a fazer.
Desejo de uma boa época festiva

João Ventura disse...

Um "retrato" da vida que cai fora das contas do PIB...

Bruno Gago disse...

Paulo, deixaste-nos mais um excelente trabalho no qual infelizmente deparamo-nos cada vez mais com a solidão das pessoas.

Do egoísmo de alguns, orgulho de outros.

Mas a solidariedade de algumas pessoas vêem-se nestes momentos.

Forte abraço