quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Corte e Costura

Há alguma razão objectiva para se ouvir gabarolices a propósito de uma qualquer intervenção cirúrgica? Porque será que quem as fez as exibe como se medalhas de bravura se tratassem? Falam da vesícula e do apêndice como se falassem de um petisco ao fim-de-semana. Seja por influência dos canais televisivos que banalizam as cirurgias seja porque faz parte desta necessidade de se ser corajoso na selva, falar de operações tornou-se corriqueiro. Mais: quem as fez julga-se melhor do que outros. E não, não é naquela perspectiva infantil em que “o meu é maior que o teu, nha, nha, nha, nha, nha, nha!”. É mesmo gabarolice bacoca.
Mas… será assim?
A anestesista chegou bem perto e recomendou que pensasse em algo simpático. Sei lá… para ficar perto de casa, deixasse que a mente divagasse pelas praias do Guincho. Nã… do Guincho não que agora está um frio do caraças… Okay. Praias do Brasil. Parece bem, fala-se português e dá para arregalar a vista. Não é que agora os pensamentos paradisíacos sirvam de alguma coisa. Um tipo sente-se nú, está nú, e despido de presunção. Pode armar-se, crescer na maca, mas está desarmado. Não pode fugir para lado algum, tem ventosas coladas no peito (vai ser bonito para as tirar de cima dos pelos, vai) e ainda por cima taparam-lhe a visão para o resto do corpo. Olha em para baixo, para os pés, e vê lençol; olha para cima e vê dois focos que ferem o olhar; olha para o lado e vê gente de máscara. Se os olhos são o espelho da alma, os olhos que se vêem não espelham coisa nenhuma. Ainda dá para imaginar que por detrás da máscara se pode esconder uma mulher de rara beleza, seja ela cirurgiã, enfermeira ou anestesista. Mas…. Nesta altura o que se pensa mesmo é se, depois, quando tudo acabar, se vai acordar vivo e a mexer os dedos dos pés.
Ao estender o braço para a picada que antecede aquela viagem que a máscara de anestésico proporciona, pensa-se que ou á agora, ou nunca. Depois do líquido nos entrar no sangue e nos atazanar a cabeça, não há nada a fazer. Estamos nas mãos dos senhores da máscara, lencinho da cabeça e luvinhas de borracha para não se estragarem. Ou não estragarem quem vão cortar.
Agora, pelo menos neste caso, quase não se corta.
A vesícula, que é uma coisa que nos frangos aparece verde e colada ao fígado, deu-lhe para criar pedra e desatinar numa agonia permanente que…
blhec, que enjoo.
Daí vieram as dores na barriga o arroto a ovos podres – embora supostamente nunca se tenha comido ovos podres (é bom que não se tenha comido!...) – e o veredicto dito com uma simplicidade que até assusta.
Vamos ter de cortar isso e deitá-la fora.
Assim.
Como se aquele pedaço de carne em forma de saco contendo um líquido lá dentro e que dizem auxiliar a digestão, não nos fizesse falta nenhuma. O corpo é uma coisa estranha. Está cheio de peças que, afinal, parecem estar a mais. A médica disse-me que não ia fazer falta. Já do apêndice, esse penduricalho que é constantemente referenciado quando se falam de intervenções cirúrgicas, também se diz não ter qualquer função nenhuma nas pessoas adultas. Não faz falta mas para dar chatice, é o primeiro a aprimorar-se. Aparece mansinho como uma dor que se desloca do estômago para a barriga e fixa-se ali, do lado direito como uma faca a esfrangalhar-nos a paciência até ser tirado pela nobre arte de corte e costura dos cirurgiões.
Agora era a vesícula…
Três furinhos na barriga, vai poder ir à praia sem costura e amanhã está em casa. Não custa nada…
Foi isso que disseram.
Não custa nada. Não custa nada… pois não: A eles não custa nada.
Eh pá! O raio da barriga é funda. E gorda… olha para isto. É só coisas amarelas. Até aqui, junto à vesícula… é só coisas amarelas….
A médica cirurgiã já perscrutava as entranhas em busca da vesícula que havia de separar do fígado e não se eximia de tecer comentários. Na viagem que a dona da vesícula fazia agora, fosse pelas praias do Brasil fosse por onde fosse, ouvia-se ao longe….
É gorda.
Tem coisas amarelas.

Em pouco mais de meia hora, esburacou-se a barriga em três pontos e, através deles, manipulou-se o fígado, laqueou-se a cística de forma meticulosa – que faz lembrar o ponto cruz da minha mãe – e cortou-se a vesícula pela base. A vesícula, a tal bolsa muscular que se enchera de pedras e enjoara o tino dos últimos dias, estava, pouco tempo depois da recomendação de bons sonhos, morta, despejada de líquido verde e azedo, a repousar num copo para análise.

Os buracos na barriga foram agrafados…
Aos poucos, com estímulos que, por brincadeira, podem passar por cócegas no céu da boca, deixa-se a praia do Guincho ou de Copacabana. E sai-se dessa viagem com o mesmo feitio embirrante como se fosse verdade. Como se tivessem acordado aos empurrões e interrompido o sonho bom. As luzes no tecto começam a aparecer aos poucos a ocupar um espaço que não era suposto ocupar na praia onde se esteve…
Deixou-se para trás a areia, o mar revolto mas simpático e as imagens de tanga que se supõem nas boas praias.
Ficaram as coisas amarelas.
É gordura e fica para depois….
 

Obrigado à Marta, à Wilma e ao Vítor Nunes. Os cirurgiões que me têm satisfeito a curiosidade sobre o que temos por dentro. Com corte, costura e coisas amarelas

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